12/08/2012 - 08h00
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
"Um governo em que a mão direita e a mão esquerda não parecem
pertencer a um mesmo corpo". Assim a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha
define o governo Dilma Rousseff: a gestão tem uma "face boa", que
promove inclusão social, e outra "desenvolvimentista", que "não
se importa em atropelar direitos fundamentais e convenções
internacionais".
Pioneira na discussão contemporânea da questão indígena e liderança no
debate ambiental, Manuela, 69, acha o novo Código Florestal "um tiro no
pé": "A proteção ambiental é crucial para a sustentabilidade do
agronegócio".
A professora emérita da Universidade de Chicago está relançando seu
clássico de 1985, "Negros, Estrangeiros: Os Escravos Libertos e Sua Volta
à África" [Companhia das Letras, 272 págs., R$ 49], sobre escravidão e
liberdade no Atlântico Sul.
Nesta entrevista, concedida por e-mail, ela constata vestígios de realidade
escravocrata no Brasil de hoje: "Olhe com atenção cenas de rua. São muitas
as que parecem saídas de fotografias dos anos 1870 ou até de aquarelas de
Debret, da década de 1820".
Folha - Como a sra. avalia o desempenho do governo Dilma?
Manuela C. da Cunha - Há pelo menos duas faces no governo Dilma que não
são simplesmente resultado de composições políticas. Há a face boa, que promove
uma política de inclusão social e de diminuição das desigualdades. E há uma
face desenvolvimentista, um trator que não se importa em atropelar direitos
fundamentais e convenções internacionais.
Exemplos disso são a portaria nº 303, de 16/7, da Advocacia Geral da União,
sobre terras indígenas, que tenta tornar fato consumado matéria que ainda está
em discussão no Supremo Tribunal Federal, além de outras iniciativas recentes
do Executivo, como a redução de áreas de unidades de conservação para
viabilizar hidrelétricas.
Somam-se a essas duas faces do Executivo as concessões absurdas, destinadas
a garantir a sua base parlamentar.
O resultado é um governo em que a mão direita e a mão esquerda não parecem
pertencer a um mesmo corpo. Corre, por exemplo, o boato de que a senadora Kátia
Abreu (PSD-TO), que chefia a bancada ruralista, poderia ser promovida a
ministra da Agricultura!
Quem está vencendo o embate entre o agronegócio e os que
defendem a preservação ambiental?
Ninguém venceu: com o novo Código Florestal, todos perdem, inclusive os que
se entendem como vencedores. O Brasil perdeu.
Agrônomos, biólogos e climatólogos de grande reputação foram solicitados
pela SBPC e pela Academia Brasileira de Ciências a se pronunciarem sobre o novo
Código. Esse grupo, do qual tive a honra de ser uma escrevinhadora, publicou
análises e documentos ao longo dos dois anos que durou o processo de discussão
no Legislativo. As recomendações fundamentais do mais importante colegiado de
cientistas reunidos para examinar as implicações do Código Florestal não foram
acatadas.
Como declarou Ricardo Ribeiro Rodrigues, professor titular da Esalq (Escola
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), o Brasil perdeu a oportunidade de
mostrar ao mundo que é possível conciliar crescimento da produção de alimentos
com sustentabilidade ambiental. Para aumentar a produção, não é preciso mais
espaço, e sim maior produtividade.
Foi com ganhos de produtividade que a agricultura cresceu nas últimas
décadas. Diminuir a proteção ambiental, como faz o novo Código Florestal, é
miopia, é dar um tiro no pé e privar as gerações futuras do que as gerações
passadas nos legaram. Pois a proteção ambiental é crucial para a
sustentabilidade do agronegócio.
É constrangedor ainda que, para favorecer a miopia dos setores mais
atrasados do agronegócio, se tenha usado uma retórica de proteção à agricultura
familiar. O que se isentou de reposição de reserva legal no novo Código não foi
exclusivamente a agricultura familiar e sim um universo muito maior, a saber
quaisquer proprietários de até quatro módulos fiscais.
A agricultura familiar está sendo na realidade diretamente prejudicada pela
brutal redução que vinha sendo feita das matas ciliares. No Nordeste e no Norte
de Minas, vários rios secaram. Com o antigo Código, ainda se tinha amparo da
lei para protestar. Hoje, o fato consumado tornou-se legal. Isso se chama
desregulamentação.
Por que o movimento de intelectuais não conseguiu êxito?
O movimento "A Floresta Faz a Diferença" não pode ser
caracterizado como um movimento de intelectuais. Não só 200 entidades da
sociedade civil se uniram no protesto, mas a população em geral se manifestou
maciçamente.
Lembro que duas cartas de protesto, no final de 2011, somaram mais de 2
milhões de assinaturas. Já na pesquisa de opinião do Datafolha, realizada entre
3 e 7 de junho de 2011, em ambiente urbano e rural, 85% se manifestaram contra
a desregulamentação que é o novo Código Florestal. E prometeram se lembrar nas
urnas do desempenho dos parlamentares.
E o pior foi que congressistas de partidos que se dizem de esquerda, dos
quais se esperava outro comportamento, tiveram atuação particularmente
lamentável. Faltou uma sintonia entre o Congresso e o povo: cada vez mais os
políticos não prestam contas a seus eleitores e à opinião pública.
Há quem aponte interesses externos no discurso da
preservação de áreas ambientais e de reservas. Qual sua visão?
A acusação de que ambientalistas e defensores de direitos humanos servem
interesses externos é primária, além de velhíssima: teve largo uso desde a
ditadura e na Constituinte. Sai do armário quando não há bons argumentos.
Como a questão indígena está sendo tratada? Como devia
ser tratada?
Hoje a questão indígena está sob fogo cerrado. Muitos parlamentares estão
tentando solapar os direitos indígenas consagrados na Constituição de 1988.
Querem, por exemplo, permitir mineração em áreas indígenas e decidir sobre
demarcações. E a recente investida da Advocacia Geral da União de que já falei
levanta dúvidas sobre as disposições do Poder Executivo.
Em "Negros, Estrangeiros" a sra. afirma:
"Tentou-se controlar a passagem da escravidão à liberdade com o projeto de
ver formada uma classe de libertos dependentes. Formas de sujeição ideológica,
em que o paternalismo desempenhou um papel essencial, e formas de coerção
política foram postas em uso". Essa realidade persiste?
Comento no livro que um dos mecanismos do projeto de criar uma classe de
libertos dependentes foi a separação mantida até 1872 entre o direito
costumeiro e o direito positivo. Alforriarem-se escravos que oferecessem seu
valor em dinheiro era um costume, mas não era um direito, contrariamente ao que
se apregoou.
A alforria, mesmo paga, era sempre considerada como uma concessão do
senhor, e implicava um dever de gratidão para o liberto: tanto assim que, desta
vez por lei, podia ser revogada se o liberto se mostrasse ingrato. Hoje a lei
avançou e o conhecimento das leis também. A dependência não é mais a mesma. Mas
o clientelismo, do qual o paternalismo é uma forma até mais simpática, não
desapareceu. As ligações e lealdades pessoais, a proteção, as conivências são
flagrantes na esfera política.
Mas você me pergunta de vestígios da realidade escravocrata no Brasil. Olhe
com atenção cenas de rua. São muitas as que parecem saídas de fotografias dos
anos 1870 ou até de aquarelas de [Jean-Baptiste] Debret, da década de 1820. As
babás escravas cujos retratos aparecem no livro são muito parecidas com as que,
mais malvestidas e todas de branco, levam as crianças aos parques no Rio de
Janeiro. Os carregadores de ontem e de hoje pouco diferem...
Como a sra. explica a escravidão moderna? Por que ela
persiste?
A escravidão moderna, nisso semelhante à escravidão legal que desapareceu,
é uma das múltiplas formas de uma questão sempre atual, a do fornecimento e do
controle de mão de obra.
Trabalhadores em regime análogo à escravidão em fazendas;
em São Paulo, imigrantes bolivianos e paraguaios enfrentam condições desumanas
em confecções. Qual relação há entre essa realidade e a história brasileira de
escravidão?
As formas contemporâneas de opressão de trabalhadores, sobretudo urbanos,
não são específicas ao Brasil: por toda parte, elas afligem populações de
migrantes sem documentos, que, mantidos na ilegalidade e sempre sujeitos a
serem expulsos, não conseguem se defender das condições degradantes. A
propalada globalização permitiu livre trânsito a mercadorias e capitais, mas não
se estendeu (a não ser no âmbito da União Europeia) às pessoas.
No campo, os regimes análogos à escravidão usam a força para restringir a
liberdade, e não a chantagem, já que em geral se trata de brasileiros
recrutados em outros Estados que, teoricamente, poderiam recorrer às
autoridades. Mas o isolamento físico e a distância dos seus lugares de origem
permitem que impunemente se use a força contra eles.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1135291-para-antropologa-governo-joga-entre-a-inclusao-e-o-trator.shtml/Rede Florestal
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