quarta-feira, 24 de março de 2010

Artigo Sobre Modificações no Código Florestal-Autoria de Eng. Florestais

A Regionalização do Código Florestal: mais que uma rotulação, uma obrigação Constitucional

Sebastião Renato Valverde (1), Sigrid de Aquino Neiva( 2) e Josiane Wendt Antunes Mafra (3)

Há mais de uma década procuramos, por forças do ofício, nos inteirar sobre a legislação florestal e, por forças, provavelmente do além, investigar sobre os aspectos jurídicos e práticos da sua aplicabilidade. Isto tem se dado inclusive porque nos vem incomodando algumas exigências legais que, em nível de propriedade rural, especialmente nas regiões montanhosas, têm colidido com a tradição de uso e ocupação do solo e com a própria sobrevivência digna do produtor.
Talvez, já naquela época tenhamos sido, quem sabe, abduzidos pelo inimaginável, que nos fez pressentir o conflito que esta legislação provocaria no futuro, hoje tão palpável e concreto. É perceptível, aliás, que, pela batalha campal instalada no Brasil entre os defensores e opositores da reforma do Código Florestal brasileiro (Lei nº. 4.771/65), este futuro, de fato, chegou.
Reconhecendo que este diploma legal, apesar de seu caráter restritivo, coercitivo e tecnicista, não foi capaz de conter o excesso de desmatamento, notadamente, na Mata Atlântica e na Amazônica e, ainda, percebendo os diversos conflitos e contradições que ele vem provocando ao longo de sua existência, é impossível não duvidar da sua eficácia econômica, social, jurídica e até mesmo, ambiental. Assim, em última instância, de sua eficiência.
E mais: considerando o fato de esta Lei ter sofrido diversas alterações, a partir da instalação da Assembléia Nacional Constituinte, por invocação, principalmente, das organizações e movimentos ambientalistas e, ainda, visualizando o fato de sua implantação fática gerar, lado outro, graves conflitos no campo, é perceptível que ela não tem igualmente atendido aos anseios sociais.
Deveras, a leitura que vem sendo feita sobre a questão é notadamente disciplinar, nunca se tendo primado por uma solução verdadeiramente conjunta, envolvendo os diversos atores sociais, direta e indiretamente, interessados. Aliás, nunca se teve em mente que a proteção ambiental é um encargo que deve ser suportado, de modo solidário, por toda a sociedade que do meio se beneficia e não individual e unicamente pelo titular da propriedade rural, como vem sendo, ainda que inconscientemente, apregoado.
Do mesmo modo, é cristalino que, no momento de confecção não somente do atual Código Florestal, mas ainda das demais legislações que o modificaram, não se considerou que o Brasil, de dimensões continentais, comporta uma realidade rural múltipla. Isto implica na existência de distintas condições relativas ao solo, ao relevo, à vegetação e ao clima, que fazem com que a maior parte de uma propriedade possa ser abrangida por áreas de preservação permanente (APP) e Reserva Legal (RL).
A legislação florestal brasileira, conquanto tente traçar alguns parâmetros levando em consideração a questão suscitada, é demasiada empírica, mostrando-se insuficiente para impor, no plano meramente teórico e abstrato, a proteção ambiental pretendida. É que, uma vez lançados parâmetros de proteção totalmente desconectados com as possibilidades de manejo sustentável do solo (notadamente no caso das APP), bem como com as diferenças fundiárias, ambientais, culturais e socioeconômicas existentes no país, acaba não se mostrando realmente capaz de vislumbrar toda uma gama de fatos passíveis de ocorrerem no caso concreto.
Afinal, o meio ambiente é constituído de vieses por vezes complexos, multifacetados, sendo difícil vislumbrar, com tamanha certeza, quais são todas as interferências que sofre, bem como o alcance destas. Sendo assim, a existência de uma lei pormenorizada seria, no mínimo, contraproducente e inconseqüente.
Vê-se, pois, neste sentido, que, sendo ineficaz, ineficiente e injusta a atual legislação florestal "protetiva", a construção de um novo Código Florestal se sobrepõe à banal rotulagem e indisposições entre as classes (leia-se: ambientalistas e ruralistas) que polarizam a discussão de sua reforma.
A propósito, um ponto que igualmente não pode deixar de ser destacado é a pretensão da atual Lei querer ser exaustiva. Isto fere inclusive a Constituição da República Federativa do Brasil no que tange à delegação de poderes feita aos Estados e Municípios para legislarem de forma concorrente à União sobre recursos ambientais, já que é cediço caber a esta a definição de normas meramente gerais.
Certamente, parte do que foi exposto acima explica a colisão existente entre a função de proteção ambiental com a de produção no meio rural. As regras impostas pela Lei Florestal, sobretudo as alteradas a partir da década de 1980, têm entrado em choque com os costumes do homem do campo.
Ora, conquanto o meio ambiente natural possua uma complexidade difícil de ser apreendida e modelada e que há uma relação cultural do homem com as questões ambientais no campo, qualquer disposição normativa, qualquer política pública que se queira implantar, qualquer forma de intervenção nas atividades humanas deve levar em consideração este aspecto, sob pena de ser realmente ineficaz socialmente.
Acreditamos que é preciso dar uma basta nestas invasões de conceitos vazios e inaplicáveis na legislação florestal. Esta precisa conviver com a realidade fática, no seu mais íntimo sentido e alcance. Deve-se sempre pensar o aspecto ecológico, com a relevância que lhe é devida, mas que isto seja feito no contexto das estruturas culturais, socioeconômicas e políticas observadas. Pois, da forma como a lei se encontra, qualquer produtor, disperso geograficamente e desassistido legalmente, mas sabedor da importância dos recursos hídricos para a sua própria sobrevivência e para a sua produção, mesmo quando protege as nascentes, as cabeceiras e as margens dos cursos d’água, ele estará sempre numa situação de ilegalidade perante o Código Florestal.
Ao que se percebe, mais que um conflito entre preceitos constitucionais, tais como a Função Social da Propriedade, de um lado, e a sua Função de Proteção Ambiental, de outro, ou mais do que se preocupar em sobrepor o Direito Coletivo ao Direito Individual, o que está em jogo é a existência de um conflito entre Regras e Costumes. Regras estas criadas e deformadas por pessoas, muitas das vezes alheias à realidade rural, e que são capazes de ceifar a dignidade da pessoa humana no caso concreto apresentado.
Como dito, desde a sua entrada em vigor, o Código Florestal vem sofrendo inúmeras alterações, por meio de diversos instrumentos legais (leis, medidas provisórias, resoluções, etc.), difíceis de serem interpretadas e aplicadas, de fato, no meio rural. Tanto isto é verdade que, para a sua aplicação fática, fez-se necessário criar um ambiente político e institucional sustentado por instrumentos e mecanismos de gestão florestal fundamentados no binômio Comando e Controle, excessivamente burocrático.
Estes instrumentos rígidos atingem linearmente todas as unidades de produção, e só são eficazes se, além da competência para estabelecer regras, o Estado tiver boa estrutura de policiamento e punição contra os produtores rurais, independente do porte de suas propriedades, algo que, até o momento, não tem sido verificado no País.
Em que pese o Brasil possuir uma legislação florestal vista como modelo por alguns, ela, na prática, não consegue ser cumprida a rigor. O que se vê em todas as regiões do País, principalmente naquelas onde o relevo predominante é montanhoso, é que o cumprimento legal, sobretudo no que tange à imposição das APP, compromete a sustentabilidade da propriedade rural. Aliás, se esta Lei realmente fosse boa, não seria vítima de tanta alteração, até por parte de quem hoje se posiciona contra a sua reforma. Ora, como exposto, o que é bom, já nasce como tal, não precisando sofrer tanta ingerência assim.
Neste contexto de violência legiferante e desatino, há que ressaltar que as RL, como mais um exemplo de inoperância, ineficácia e ineficiência, não são sequer figuras passíveis de receptividade pela Constituição da República de 1988, posto que são incapazes de garantir o equilíbrio ecológico que esta apregoa. É que elas não tornam efetiva e segura a proteção dos processos ecológicos essenciais, da diversidade e da integridade do patrimônio genético do país, dos espaços territoriais e seus componentes, muito menos, da função ecológica e perpetuação das espécies.
A bem da verdade, ao se considerar o fato de que o Código foi criado em 1965, diante de uma Constituição da República (1946) que reservava apenas à União a prerrogativa de legislar sobre os recursos naturais, a celeuma provocada por ele é mais do que esperada. Afinal, em um país continental e rico em diversidade de todas as ordens - desde os mais variados biomas, às diferentes espécies de relevo, solo, elementos culturais, etc., - seria extrema pretensão desejar que uma única lei florestal regesse a questão.
Sabendo que todo problema ambiental está intrinsecamente ligado às características ecológicas particulares do local onde ele ocorre – ainda que haja conseqüências e interferências em nível global –, as soluções propostas, necessariamente, deveriam preservar o vínculo com estas condições particulares. Determinada solução pode apresentar resultados completamente diversos quando se variam estas características, correndo-se o risco de cometer um verdadeiro contra-senso ecológico a propositura de soluções ambientais unificadas ou legislações que abranjam todo o território nacional.
Estudos têm demonstrado que as APP nas regiões montanhosas, além de ocuparem partes significativas das propriedades rurais, situam-se justamente nas melhores faixas agricultáveis destas, seja pelo aspecto físico, facilidade operacional e de irrigação, seja pelo aspecto químico, fertilidade do solo.
Como se não bastasse o conflito entre a produção agrícola com a faixa de proteção exigível para a APP, outro possível agravante é a interpretação, por parte das mais diversas organizações, de que estas áreas são intocáveis, mesmo que não estejam cobertas por vegetação nativa. Espanta-nos tamanha arrogância: querem proibir o homem de usufruir das dádivas divinas, impedindo-o, inclusive, de se aproximar de uma árvore caída na floresta, quando um cupim, em contrapartida, pode degradá-la. Cá para nós, fomos longe demais com uma legislação tão soberba.
É sabido que a única variável adotada para definir a largura das APP ao longo dos cursos d’água é a própria largura destes últimos, critério este que, apesar de questionado, talvez tenha sido o único possível de ser adotado naquela época. Aliás, razões como esta é que explicam a tão difícil aplicabilidade desta legislação, conforme vários estudos têm demonstrado.
Diante deste contexto, entende-se como primordial a construção de uma nova Lei Florestal apta a abrigar as diversidades ecológicas, físicas, sociais, culturais, econômicas e regionais visualizadas, tendo como princípios: o atendimento à exigência constitucional de que a Lei Federal, por não ter condições de abrangência minuciosa e atendimento às particularidades locais e regionais, deve se ater a normas gerais; o papel, por conseqüência, dos Estados e Municípios de legislarem concorrentemente à União sobre estes recursos; e, enfim, a discricionariedade motivada dos técnicos, dentro de sua área de conhecimento, a partir dos parâmetros genericamente traçados pela Lei.
Desta forma, incomoda quando vemos o ambiente do debate sendo monopolizado pelos representantes do setor produtivo e do meio ambiente, se posicionando, respectivamente, de forma favorável e contra a reforma deste Código. Isto se opera como se fosse um privilégio e interesse apenas deles a discussão desta questão e, ainda, como se o que mais importasse fosse quem tem mais poder de pressão política e de convencimento da opinião pública. Para nós, o que está em jogo é mais do que uma mera vontade, sendo, na verdade, algo soberano às ofensas retóricas das classes que se rotulam asquerosamente de ambientalistas e ruralistas, pois, em maior instância, trata-se de uma obrigação constitucional.
Vide e viva a Constituição da República Federativa do Brasil - esta sim, fruto de uma inspiração madura e divina do constituinte – e, mais especificamente, vide e viva os seus artigos 1º, III e 24, aptos, em seu conjunto e em consonância com outros dispositivos constitucionais de magnitude, a darem um direcionamento mais coerente, concreto e aplicável à questão.

(1) Professor Associado do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais. valverde@ufv.br.
(2) Engenheira Florestal. Mestre em Ciência Florestal. sigridneiva@yahoo.com.br
(3) Advogada e consultora jurídica. Escritório “Mafra e Antunes Advocacia e Consultoria”, Caratinga, Minas Gerais. jwantunes@hotmail.com

Nenhum comentário: